Cultura árabe na Península
Sociedade e demografia. Aspectos da vida quotidiana
A população do Al-Andalus era muito heterogénea e constituída por árabes e berberes (uns e outros muçulmanos), moçárabes (são os hispano-godos que, sob o domínio muçulmano conservaram a religião cristã de rito-moçárabe, mas adoptaram as formas de vida exterior dos muçulmanos), e judeus. Para além destes, existia outro grupo, os muladis, que eram os cristãos que se tinham convertido ao islamismo.
Os moçárabes e os judeus tinham liberdade de culto, mas em troca dessa liberdade eram obrigados ao pagamento de dois tributos: o imposto pessoal de capitação (gízia), e o imposto predial sobre o rendimento das terras (carage). Estes dois grupos tinham autoridades próprias, gozavam de liberdade de circulação e podiam ser julgados de acordo com o seu direito.
Moçárabes e judeus estavam sujeitos às seguintes restrições:
não podiam exercer cargos políticos;
os homens não podiam casar com uma muçulmana;
não podiam ter serviçais muçulmanos ou enterrar os seus mortos com ostentação;
deviam habitar em bairros separados dos muçulmanos;
estavam obrigados a dar hospitalidade ao muçulmano que necessitasse, sem receber remuneração.
As cidades de Toledo, Mérida, Coimbra e Lisboa eram importantes centros moçárabes da península. Em Toledo os moçárabes chegaram a encabeçar uma revolta contra o domínio árabe.
Poucos anos depois da invasão muçulmana, os cristãos (hispano-godos e lusitano-suevos) acantonados nas serranias do Norte e do Noroeste da Península, iniciaram a reconquista do território, formando novos reinos que se foram estendendo sucessivamente para o sul. Alguns moçárabes migraram para os reinos cristãos do norte, tendo difundido neles elementos da cultura moçárabe ao nível arquitectónico,onomástico e toponímico.
Os judeus dedicavam-se ao comércio e à recolha dos impostos; foram também médicos, embaixadores e tesoureiros. Hasdai Ibn Shaprut (915–970), um judeu, foi um dos homens de confiança do califa Abderramão III de Córdova.
Os árabes estabeleceram-se nas terras mais férteis, ou seja, no sul, no levante e no vale do rio Ebro. Quanto aos berberes, estes ocupariam as áreas de relevo mais montanhoso, como as serras da Meseta central e serra de Ronda, sendo também numerosos no Algarve (um berbere, Said ibn Harun, daria de resto o seu nome a Faro). Depois da revolta berbere de 740, muitos regressaram ao norte de África.
Os negros chegaram ao al-Andalus como escravos ou como mercenários. Desempenharam funções como membros da guarda pessoal dos soberanos, enquanto que outros trabalhavam como mensageiros. As mulheres negras foram concubinas ou criadas.
Os eslavos eram de início escravos, mas muitos conseguiram progressivamente comprar a liberdade; alguns alcançaram importantes cargos na administração. Durante o período dos primeiros reinos de taifas (século XI) alguns eslavos formariam os seus próprios reinos.
As casas das classes mais abastadas caracterizavam-se pelo seu conforto e beleza, graças à presença de divãs, tapetes, almofadas e tapeçarias que cobriam as paredes. Nestas casas as noites eram animadas com a presença de poetas, músicos e dançarinos.
Banhos públicos
Nas zonas rurais e urbanas existiam banhos públicos (hammam), que funcionavam não só como espaços de higiene, mas também de convívio. Os banhos islâmicos apresentavam uma estrutura herdada dos banhos romanos, com várias salas com piscinas de água fria, morna e quente.
Termas árabes |
Neles trabalhavam massagistas, barbeiros, responsáveis pela guarda das roupas, maquilhadores, etc. A parte da manhã estava reservada aos homens e a da tarde às mulheres. Com a Reconquista cristã muitos destes banhos foram encerrados por ser entender que eram locais propícios a conspirações políticas, bem como à prática de relações sexuais.
Alimentação
O pão era a base da alimentação do al-Andalus, consumindo-se também carne, peixe, legumes e frutas. Os alimentos eram cozinhados com o recurso a ervas aromáticas, como óregãos, alecrim e hortelã-pimenta (esta última também usada no chá) e especiarias (gengibre, pimenta, cominhos...). A gordura usada era o azeite (az-zait), sendo o produzido na região de Coimbra famoso.
Queijadas de Sintra |
Os doces eram também apreciados, como as queijadas (qayyata), o arroz doce povilhado com canela e diversos pastéis feitos com frutos secos e mel, que são ainda hoje característicos da gastronomia de certas regiões da península.
Economia
A chegada da civilização islâmica à península Ibérica provocaria importantes transformações económicas. De uma economia essencialmente rural passou-se para uma economia marcadamente urbana.
Um dos locais mais importantes da cidade muçulmana é o suq ou mercado. Os mercados conheceriam um renascimento na península durante o período islâmico. Neles realizava-se o comércio de produtos diversos, principalmente dos produtos de metal e de outros produtos do artesanato. As oficinas e tendas do al-Andalus, onde se produziam esses trabalhos, eram propriedade do Estado. Os principais produtos do comércio eram as sedas, o algodão, os tecidos de lã. Alguns artigos de luxo produzidos no al-Andalus seriam exportados para a Europa cristã, para o Magrebe e mesmo para o Oriente
A nível da agricultura, nas zonas secas do al-Andalus surgiria o cultivo do trigo e da cevada. Semeiam-se também ervilhas, favas e grãos, que eram a base da alimentação da população. Em períodos durante os quais a produção de cereais era baixa recorria-se à importação de cereais do norte de África. Foi durante este período que o cultivo do arroz foi introduzido na Península Ibérica, bem como da beringela, da alcachofra e da cana-de-açucar.
Pomares |
Os pomares ocupavam uma importante área agrícola; Sintra seria mesmo cantada pelos poetas pela sua fruta, sendo famosa pelas suas peras e maçãs. O actual Algarve destacava-se pela produção de figos e uvas. Saliente-se ainda o interesse pela produção do mel. Embora o seu consumo seja interdito pelo islão, o vinho terá sido produzido e consumido no al-Andalus em grandes quantidades, pelo menos até ao período dos Almóadas, que reprimiram o seu consumo.
A criação de gado era também uma prática comum, em particular de gado bovino e caprino. Os animais de capoeira como os coelhos e as galinhas eram muito apreciados na alimentação.
Os muçulmanos cruzaram os sistemas hidráulicos dos Romanos com os dos Visigodos e com as técnicas que traziam do Oriente. Ao longo dos rios constroem moinhos de água, as azenhas (saniya). Para retirarem a água dos poços introduzem a nora (na ´ura) e a cegonha (ou picota).
Azenha |
A abundante madeira das florestas era usada para o fabrico de peças de mobiliário e para a construção naval. Em Alcácer do Sal esta actividade era intensa devido à existência de bosques nas proximidades.
A pesca e a extracção do sal eram propiciadas pela existência de uma considerável linha costeira. As espécies mais capturadas eram a sardinha e o atum, utilizando-se para a captura deste último um tipo de rede própria, denominada almadrava.
Durante este período continua a exploração das jazidas de minérios da península, que já vinha desde o tempo dos Romanos. O ouro era extraído dos arenitos de alguns rios, como o Tejo. A prata poderia ser encontrada em jazidas em Múrcia, Beja, e Córdova.
Pátio dos Leões em Granada |
As primeiras manifestações artísticas e arquitectónicas islâmicas no al-Andalus continuam as tradições do período hispano-godo e fundem-nas com as tradições bizantinas e persas trazidas do Oriente. A presença visigoda pode ser vista, por exemplo, no uso do arco em ferradura, que contudo apresenta-se mais fechado.
Os materiais de construção mais comuns foram a pedra e o tijolo e os elementos decorativos adoptados foram os geométricos, vegetais e epigráficos.
Um dos monumentos mais representativos da civilização islâmica peninsular é a GrandeMesquita de Córdova. Este edifício começou a ser construído em 786, durante o reinado de Abderramão I, no local onde se encontrava a basílica visigoda de São Vicente, tendo sido alvo de sucessivas ampliações e modificações até aos finais do século X.
Ciência
À semelhança do que sucedeu no domínio artístico, os árabes e berberes que se fixaram na península Ibérica no século VIII começaram por recorrer aos saberes legados pela civilização visigoda. Progressivamente, fruto dos contactos com o Oriente (no contexto, por exemplo, da peregrinação anual a Meca) e do desejo de alguns soberanos do al-Andalus em fazerem das suas cortes centros de saber que rivalizassem com as cidades do Médio Oriente, desenvolveu-se no al-Andalus uma ciência que apresentou aspectos de originalidade.
Abd ar-Rahman II foi um dos primeiros governantes que se esforçou por converter a sua corte em Córdova num centro de cultura e sabedoria, tendo recrutado com esse objectivo vários sábios do mundo islâmico. Um deles foi Abbas ibn Firnas, que embora tivesse sido contratado para ensinar música em Córdova, brevemente se interessou por outros campos do saber, como o vôo; ele seria o autor de um aparelho voador feito em madeira, com penas e asas de grandes aves (uma espécie de asa delta).
Astrolábio Persa sec. XVIII |
Decidido em testar a sua obra, atirou-se de um ponto alto da cidade de Córdova, e segundo os relatos, conseguiu voar durante algum tempo, mas acabou por despenhar-se, sofrendo alguns ferimentos. Em sua casa, Ibn Firnas construiu um planetário, no qual não só se reproduzia o movimento dos planetas, mas também fenómenos como a chuva e a trovoada.
No campo da astronomia, devem salientar-se os trabalhos de Al-Zarqali que viveu em Toledo e em Córdova no século XI e que é conhecido no Ocidente pelo seu nome em latim, Azarquel. Notabilizou-se pela construção de instrumentos de observação astronómica, tendo inventado a azafea, um tipo de astrolábio que foi usado pelos navegadores até ao século XVI. Defendeu também que a órbita dos planetas não era circular, mas elíptica, antecipando Johannes Kepler neste domínio.
Al-Zahrawi (936–1013), mais conhecido pelo nome Albucasis), médico da corte do califa al-Hakam, foi um importante cirurgião do al-Andalus. É conhecido como autor da enciclopédia Tasrif, na qual apresentou os seus procedimentos cirúrgicos (amputações, tratamentos dentários, cirurgias aos olhos...). Esta obra seria traduzida para o latim e usada na Europa no ensino da medicina durante a Idade Média.
Na botânica e farmacologia, Ibn Baitar (nascido em Málaga em finais do século XIII) estudou as plantas da península Ibérica, Norte de África e Médio Oriente graças às viagens que efectou nestas regiões. Foi autor da obra Kitab al-Jami fi al-Adwiya al- Mufrada, na qual listou 1400 plantas com os seus respectivos usos medicinais; embora se tivesse baseado nos antigos tratados gregos de botânica, Ibn Baitar apresentou o uso medicinal de cerca de 200 plantas até então desconhecidas.
Ibn al-‘Awwam, residente de Sevilha do século XII, escreveu um tratado agrícola intitulado Kitab al-fila-hah, um dos trabalhos medievais mais importantes nesta área. Nele listava 585 espécies de plantas e 50 de árvores de fruto, indicando como deveriam ser cultivadas.
No período que se estende entre o século X e o século XII surgiram os grandes geógrafos peninsulares, dos quais se destacam al-Bakri, Ibn Jubair e al-Idrisi. Al-Bakri trabalhou essencialmente com fontes escritas e orais, nunca tendo deixado o al-Andalus. Foi autor do "Livro dos Caminhos e dos Reinos" no qual listava todos os países conhecidos na época. O livro estava organizado por entradas, cada uma relatando a geografia, história, clima e povo do país em questão.
Ibn Jubair, secretário do governador de Sevilha, realizou em 1183 a peregrinação a Meca, tendo aproveitado a ocasião para descrever o Mediterrâneo Oriental, fazendo referência aos acontecimentos políticos que aquela região do mundo vivia, nomeadamente as Cruzadas. Al-Idrisi, nascido em Sabtah (Ceuta), recebeu a sua educação na Córdova dos Almorávidas, mas teve que abandonar a cidade por motivos de perseguição política e religiosa, tendo se instalado na Sicília dos Normandos. Nesta ilha ele escreveu o Livro de Rogério, (cujo nome deriva do nome do patrono de al-Idrisi, o rei Rogério II da Sicília), onde descrevia o mundo conhecido de então. As informações da obra seriam plasmadas num planisfério de prata.
Um comentário:
Lusitano-suevos é um termo que não faz sentido histórico, cultural, étnico ou geográfico. Hispano-todos, Galaico-godos e Galaico-Suevos seria mais correcto. Então se formos considerar os termos e designações usados na documentação escrita entre os séculos V e X, chegaria usar a designação Hispanos e Galaicos.
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